No centro do espaço, a escultura de uma mão preta, cercada por centenas de conchas de peguari, catadas e organizadas à mão, uma a uma. Em volta, bancos em que o apreciador pode sentar, tocar e interagir com a peça. Nas paredes e demais pontos da exposição, memórias afetivas do urbano e arte, centenas de artes, feitas por artistas do Subúrbio Ferroviário de Salvador.
A descrição é uma breve leitura da instalação do Acervo da Laje na exposição Ensaios para o Museu das Origens, em cartaz no Itaú Cultural e no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, mas que revela a essência de um espaço cultural que nasceu das mãos e do olhar de um casal de professores nascido e criado em S. João do Cabrito, em Salvador. Vilma Santos – educadora – e José Eduardo – ex-professor universitário, mestre em Psicologia e doutor em Saúde Pública - transformaram um dos espaços mais característicos das vivências periféricas, a laje, em museu.
Aos treze anos de existência, o Acervo da Laje, que hoje ocupa dois imóveis no Subúrbio de Salvador, tem uma coleção de aproximadamente 20 mil peças. Mais que um espaço de exposição e simples visitação, a Associação Cultural Acervo da Laje concentra bibliotecas, hemeroteca, coleções de CDs, discos, manuscritos, croquis, conchas, tijolos, azulejos e porcelanas antigas, artefatos históricos, quadros, esculturas em madeira e alumínio, fotografias e objetos que contam a história do Subúrbio Ferroviário de Salvador, mas que dialoga com toda a cidade. Oferece ainda formações e atividades abertas a todos os públicos, inclusive o infantil.
A tomada de consciência para a relação com as artes chegou na vida do casal em 2008, quando Eduardo finalizou o doutorado na Universidade Federal da Bahia (Ufba), no qual pesquisava sobre homicídios de jovens negros na periferia. Na banca de avaliação, o sociólogo Gey Espinheira (1946-2009) lançou a semente da necessidade de se estudar a beleza, pois estudar a violência no Subúrbio já estava dado. A provocação fez Vilma e Eduardo, em parceria com um fotógrafo italiano, mapear as belezas locais.
Dois anos depois, em 2010, o casal comprou todas as obras de cinco artistas da região já falecidos. Nasceu, então, a primeira exposição pública, seguida pela abertura da laje e uma trajetória de conhecimento e reconhecimento muito além do território suburbano.
Até 2014, a coleção de peças do Acervo era exclusivamente de artistas da região. Enquanto o trabalho foi ganhando outros espaços, o leque de artistas em exposição também se expandiu.
“Aqui no Acervo, todo mundo tem acesso às obras. Pode tocar. Não tem aquela distância do museu clássico. Vários artistas começaram a doar obras para a gente. Começou a ser um acervo que está no Subúrbio, representa a arte que está dentro do Subúrbio, mas, ao mesmo, tempo dialoga com artistas da cidade toda e aconteceu também de a gente ter essa possibilidade de ter obras de artistas do Brasil”, explica Eduardo.
“É uma provocação para o Brasil. Por que os museus não podem ser sensíveis ao toque, ao diálogo, à permanência das pessoas? A gente está propondo uma experiência multissensorial e dialógica sobre a memória. É uma provocação. As exposições no modelo tradicional estão desgastadas. O Brasil está virando uma máquina de fazer exposição, mas que toca quem?”, reflete o curador e cofundador do Acervo da Laje.
Capilaridade
Além das sedes no Subúrbio de Salvador, o Acervo da Laje tem atualmente quatro exposições simultâneas, que somam cerca de mil peças. São elas: César Bahia: uma poética do recomeço, instalada no Museu de Arte do Rio de Janeiro; Dos Brasis, instalada no Sesc Belenzinho, em São Paulo; Brasil Futuro: as formas da democracia, no Solar Ferrão, em Salvador, e a presença na exposição Ensaios para o Museu das Origens já citada no início desta publicação.
Izabela Pucu, uma das curadoras do Ensaio Origens, avalia que o Acervo da Laje atualiza de forma potente a ideia de arte popular, movimento importante nas décadas de 1950 e 1960, que marcou, inclusive, a política estatal, a exemplo da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) que, com Celso Furtado, projetava a arte popular como forma de desenvolvimento econômico e social da região.
“O Acervo da Laje fala do próprio Subúrbio como agente do seu reposicionamento cultural e de uma função tripla de colecionismo, pedagógica, de difusão desses artistas, e de agenciamento. No Acervo, o popular já não é anônimo. Não é igual em Lina [Bo Bardi] que primeiro se compra nos mercados e depois se nomeia”, diz Izabela, que veio a Salvador pessoalmente para conhecer de perto o trabalho. O Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) também integra a exposição.
Na instalação, algumas cenas foram montadas a partir das “provocações”, como denomina Eduardo, “pós-Lina”, “pós-naif” e pós-ingênuos do Brasil”, em referência a movimentos que ao longo da história trouxeram para o centro da discussão a arte popular.
“É uma forma de o Acervo dizer que já entendeu os dispositivos do sistema, mas que está se apropriando dele de uma maneira crítica e se autolegitimando. Não está esperando que nenhum grande centro de cultura, nenhum agente desse sistema hegemônico venha para legitimar”, destaca a curadora. “Eles fizeram a curadoria do próprio espaço e mantiveram a questão da acumulação, que é parte da estética deles. Eles têm um núcleo grande, que eles desenharam o que teria em cada parede”, acrescenta ao falar sobre a autonomia dos agentes do Acervo no processo de montagem.
A receptividade da montagem, segundo Eduardo, tem sido um momento forte. “As pessoas estão impressionadas porque a gente está questionando alguns aspectos da arte brasileira”, diz.
“Tem uma parede super afetiva com memórias do Subúrbio. Tem uma baita parede em escultura questionando justamente o anonimato em arte popular, que é uma coisa que a gente tem brigado para deixar de existir. Todo artista popular tem que ter nome, sobrenome, biografia. E lá tem uma série de protestos bem divertidos”, enumera.
Como chegar ao Acervo da Laje?
O Acervo da Laje está sediado na R. Sá Oliveira, 2, no bairro São João do Cabrito, no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Diferente dos museus tradicionais que possuem horário e dias definidos para visitação, as sedes do Acervo estão sempre abertas ao público, com visitação é gratuita. Para garantir um tour completo pelos espaços, é aconselhável agendamento prévio. Os contatos, assim como a visitação das galerias digitais do Acervo, estão disponíveis no site oficial da entidade (acervodalaje.com.br).